O resto da vida ou A vida que resta
Essa sou eu me preparando pros meus 90 anos, que às vezes sinto que já estão bem mais próximos do que meus 20.
Outro dia consegui um vale-começo-de-night e fui no teatro de adulto com o maridão ver a monólogo/leitura dramática da Fernanda Montenegro lendo Simone de Beauvoir. Ninguém mais ninguém menos que a Fernanda Montenegro, aquela musa imortal que sempre admirei, lendo ninguém mais ninguém menos que Simone de Beauvoir. Quando abriram as vendas da nova temporada dessa peça eu corri pra comprar e já lancei a real pro meu companheiro: se não conseguirmos um esquema com as crianças, eu vou sozinha e quem perde o ingresso é você; a preferência aqui é minha.
Ela no palco é realmente retumbante. Que presença! E que capacidade de prender a atenção e guiar o espectador para uma narrativa sem nenhum outro grande atributo para auxiliar: só a leitura dela pura e simplesmente. Além da magnitude dessa atriz, uma outra coisa me deixou de queixo caído nessa apresentação: caceta, ela tem 94 anos! 94 aninhos e tá ali no palco, segurando um monólogo.
Uma senhora de quase UM SÉCULO de vida ali 3x por semana por, o que, uns 2 meses seguidos, tarde da noite, TRABALHANDO. E em pleno vapor.
Tá certo que ela conseguiu com maestria encontrar um formato que se adaptasse a sua idade: ela fica sentada todo o tempo e não precisa memorizar nada do texto porque ela o lê em cena. Mas ó: deu pra perceber que ela sabia sim o texto de cor - ou pelo menos grande parte dele. Danada!
Saí da peça realmente estupefata. Como pode tamanha vitalidade assim, em idade tão avançada? Nada naquela apresentação denunciava sinais de senilidade. Inteiraça, e ainda por cima linda demais, toda de cabeça branca e sem grandes procedimentos estéticos - nada contra quem faz, mas achei revigorante ver uma velhice pouco emperequetada, e poder ver a beleza daquelas marcas e vincos sobre um rosto expressivo e vivo. A Fernanda é mais do que uma mulher, é um tótem.
Como tenho cada vez mais matutado sobre o processo de envelhecer, não consegui tirar aquela experiência da cabeça por um tempo. Porque sim, tenho pensado demais sobre envelhecer, mas mais no sentido de “amadurecer”, ou seja, sair do que por muito tempo foi pra mim considerado “juventude”. Leio sobre etarismo, tento escutar entrevistas com pessoas mais velhas e trabalho em desconstruir uma ideia ruim do que seria deixar de ser jovem. Levando para minha vida pessoal, tenho feito mais exercícios e melhorado meus cuidados comigo mesma para garantir uma próxima fase mais saudável, feliz e em paz com minha auto estima na medida do possível. E, de maneira geral, tenho gostado do passar dos anos. Mas pensar na velhice avançada me dá sempre uma sensação difícil. Deve ser um desafio enorme se deparar com a proximidade da finitude da vida.
Talvez por essas reflexões e esse incômodo latente, tenho curtido muito ouvir as mulheres mais velhas no podcast Wiser Than Me, com a Julia Louis-Dreyfus, em que ela entrevista mulheres mais velhas - menção honrosa pra um episódio dessa nova temporada com minha outra musa Patti Smith. Aliás, a Tati Bernardi lançou a versão brasileira desse podcast, o Se Ela Não Sabe, Quem Sabe?, e iniciou entrevistando a Fernanda Torres. Já bem se vê que a faixa etária desse programa será mais baixa do que a versão original americana, já que a Torres não está nada na velhice, tem 58 anos e é até mais nova do que a apresentadora do Wiser Than Me. Críticas e pinimbas à parte, nesse episódio, a Fernanda fala de sua mãe, a outra Fernanda, e diz que ela está inteiraça. Só está mesmo com alguns lapsos de memória, em especial no tocante a nomes. E realmente, no final da peça a Montenegro foi falar da tragédia do RS e tentou se referir a alguém que ela claramente esqueceu o nome. Contornou isso lindamente e seguiu o baile.
Ainda aproveitando o gancho do Wiser Than Me, esses dias ouvi o episódio com a feminista Gloria Steinem, que está com 90 anos. Uma entrevista muito boa e muito lúcida. A Gloria comentando que está devendo um livro pro seu editor, que pretende fazê-lo em breve, e citando outros planos.
Caramba, pensei, ela não tem medo de de repente morrer antes de concluir esses planos?! É tão diferente ter metas a serem alcançadas quando se tem 30 anos e uma vida (quase) toda pela frente. Mas quando se tem 90, como será que se lida com essas coisas que ainda se quer fazer?
Veja bem, eu venho de uma família muito longeva. Até ano passado eu tinha meus 4 avós vivos. Perdi meu avô materno há um ano, ele estava com 95 anos, deixando sua esposa, minha avó aqui com 90. Semana passada foi a vez do meu outro avô completar seus 95 anos, cheio de vida e com ótima memória. Mas mesmo tendo esses idosos tão próximos de mim, a velhice sempre me foi apresentada como fim de vida.
Todos meus avós já estão há algum tempo levando uma vida pra lá de pacata. Meus avós paternos ainda viajavam bastante até alguns anos atrás, mas até isso já faz tempo, talvez mais de década, que deixou de ser uma realidade para eles. E fora essas viagens a turismo e muitas vezes em excursões para idosos, nenhum dos meus avós se puseram como idosos com planos audaciosos e ambições de realizações de vida ainda a serem alcançadas.
Tem vezes que, hoje em dia na flor dos meus jovens/velhos trintesseis, meu medo me pega de jeito e penso que já perdi o bonde para algumas metas, que algumas portas na minha vida já fecharam de vez, emperraram, e a chave está perdida nas décadas vividas que ficaram para trás. Coisas irrecuperáveis. Conquistas agora inconquistáveis. Tem dias que me sinto velha, presa nas amarras da vida, distante de ainda realizar grandes coisas novas. Como quem eu fosse agora ditasse completamente quem eu serei ou o que eu farei para o resto da minha vida.
Aí me deparando com essas nonagenárias produtivas, me pego justamente pensando sobre esse tal resto da vida. Que os anos tidos como restos, fins, rebarbas de uma existência, na verdade teriam o potencial de serem anos repletos de propósito, de desejo, de realizações.
E já que toquei nessa palavra “desejo”, abro aqui margem para problematização do que é ser desejante, algo normalmente vinculado à juventude. Jovens desejam e são desejados, velhos não. Como se fôssemos perdendo nosso potencial desejador no decorrer da vida, desembocando numa velhice calma, quieta, no máximo como a dos meus avós paternos, fazendo uma viagem anual, planejada e desapaixonada, que cabe no orçamento da aposentadoria. Mas planos para publicar um livro? Encarar uma temporada de uma nova peça em cartaz num grande teatro da cidade? Uma vida cheia de viagens a lugares dos mais variados por durações longas, como faz a Patti Smith? Como pode alguém esbanjar tanta vitalidade estando tão próximo da morte?
Eu sei que grande parte dessa minha sensação de ficar chocada diante de pessoas muito idosas ainda em pleno funcionamento de suas atividades e desejos vem justamente daí: da proximidade da morte. Como lidar com a angústia de estar tão perto do fim, com iminência dos últimos dias, e ainda ter forças para seguir sem sucumbir ao grande “não vale a pena o esforço”. Mais do que seguir, até: planejar, sonhar, desejar. Eu certamente me perguntaria “e se eu ficar senil no caminho?” e até o questionamento mais obsceno de todos: “e se eu morrer?”
No fim, como qualquer psicanálise de boteco apontaria com facilidade, essa minha surpresa diante da Fernanda Montenegro e de outras idosas diz mais sobre mim do que sobre elas, ou diz mais dos meus medos e anseios do que das reais amarras da idade avançada.
Ela me mostra que somos ensinadas a acreditar que muitas coisas estão restritas a uma dita juventude, uma controversa concepção de juventude, como se depois de perder uma certa dose de colágeno, perdêssemos também a vontade de viver. Ou até mais: perdêssemos a possibilidade de viver.
Como se a cada aniversário vivido, a gente desse um tchau e benção a um monte de vivências ainda a serem experienciadas. Jogássemos descarga abaixo um monte de vontades que temos que aprender a frustrar porque simplesmente não dá mais. E, bom, talvez dê. Sabendo ultrapassar o medo mais temido, o medo de morrer, talvez dê sim para viver.
Eu sinto que to na adolescência da vida adulta. Pensei nisso esses dias. Quando fiz 30 foi um alívio, parece que realmente um peso saiu das minhas costas e eu me senti bem comigo mesma como não tinha sentido na década anterior, consegui vislumbrar e ansiar pelos 40, coisa que antes tinha medo, até porque cheguei nos 30 não tendo realizado um monte de coisa que eu dava por certo que já teria até ali. Aí quando eu vejo essa galera de 80 fazendo um monte de coisa, Jane Fonda esticando seus bracinhos pra ser algemada num protesto, a Fernanda aí trabalhando pra caralho, até mesmo meu avô viajando, namorando eu penso que tenho tempo demais ainda pra fazer um monte de coisa e que tá tudo bem eu sentir vontade de fazer dança contemporânea agora e quem sabe fazer a faculdade de direito que eu tanto abominei aos 19, não comprei um jipe ainda, mas quem sabe aos 60 não rola fazer um rali, né mesmo?