Mal deu tempo de piscar e metade do ano já se foi. Se não fosse pelo segundo semestre das aulas das crianças começando, eu nem teria me dado conta que já chegamos ao mês oito. Oito de doze, quer dizer, dois terços do ano já passaram. Hora de revisitar aquelas metas que você prepara cheio de esperança no fim do ano, com aquela sensação de folha em branco, bons ventos favoráveis vindo, muitas coisas para acontecer.
Me pergunto se todo mundo não tem alguma vontade de que algo formidável e fora do padrão aconteça naquele ano que mude o rumo das coisas, mesmo que esse alguém esteja até bem satisfeito com o rumo das coisas. É que, em maior ou menor grau, todo mundo nutre no seu íntimo uma vontade de que a vida dê uma guinada, mesmo que isso signifique uma chacoalhada - e nenhuma chacoalhada vem sem custos. Sempre tem alguma área da vida que a pessoa não está plenamente feliz com, que ela gostaria que, sim, mudasse radicalmente – ou pelo menos mudasse, talvez não tão radicalmente assim – mas que desse uma renovada de ares. Todo espera alguma coisa de um sábado à noite, já dizia a música.
Ou será que pensar que todo mundo está em busca de algum grau de mudança seja só um sinal do que antigamente se chamava “crise de meia-idade”? Crise essa, aliás, que imagino que não se chame mais assim, até porque esse termo “meia-idade” me soa bem antiquado. Quando falo em crise de meia-idade visualizo logo um tiozão portando um espesso bigode vestido de camisa xadrez numa sala amadeirada, com uma televisão de caixote também revestida de folhas de madeira, talvez também amadeirado fosse o cheiro do seu perfume, ou do charuto que ele acendera pouco antes de dizer para sua esposa (esta por sua vez exibindo um permanente e uma franja no cabelo, também fumando um cigarro marcado pelo seu batom rosa-choque): estou passando por uma crise de meia-idade.
Meia-idade, na minha infância, era uma pessoa dos seus 40 anos. “Gatão de meia-idade”, se autodenominava meu pai, brincando. Idade da loba, para as mulheres -eu só imaginava a meia-calça LOBA, que era sucesso na época e que surpreendentemente segue com o mesmo nome segundo minha breve pesquisa de google, e não entendia bem a correlação entre as duas coisas - mulheres de 40 anos e meia-calças. Meia-idade era mais ou menos a idade que eu pensava que a tinha personagem Radical Chic das tirinhas que meus pais liam na revista do jornal, que, segundo a Wikipedia, teria em torno de 30 aninhos.
Hoje em dia 40 anos me parece muito pouco para ser considerado meia-idade, visto que tenho expectativas de viver bem mais que 80 anos (que seria, portanto, a idade inteira) e conto com os avanços da ciência para isso. Afinal, faço parte de uma geração bem mais saudável do que era a geração dos meus pais quando tinha a minha idade. Minha geração quase não tem mais fumantes (só 12,6% da população adulta do Brasil fuma), os que fumam não o fazem em ambientes fechados (o que me livra de ser uma fumante passiva), não achamos mais que os ultraprocessados vão salvar a nossa vida doméstica e fazemos exercícios físicos com frequência.
Falando em exercícios, peço desculpas pela dispersão e volto ao tópico inicial, que era, na verdade, as metas de ano novo, que já tá na hora de reavaliá-las: ver o que já foi feito e correr atrás do que não foi. Lembro da retrospectiva de fim de ano do spotify, que sempre é um fiasco pra mim, que convivo com crianças. Grande parte do tempo que passo com elas sou coagida a ouvir apenas músicas como “cai cai balão”, “abecedário da xuxa” ou a trilha de algum filme da Disney. Só que quando estou sem elas, estou ou no trabalho repleto de poluição sonora – sem chances de ouvir música; ou finalmente em algum momento de sossego auditivo, e, amante do silêncio como sou, me pego apenas apreciando a falta de gritos ao meu redor e acabo não colocando música para tocar. “Ah, Marcela, mas e a playlist da academia”, você poderia argumentar, então já adianto que durante exercícios é justamente quando ouço podcasts – prática, aliás, que me faz diariamente querer ir à academia, pra ter meu momentinho podcast, mas que por outro lado acaba com minha média de músicas ouvidas por ano.
Se eu não correr atrás, lá vai o Spotify passar na minha cara o ano com pouca musicalidade, os novos artistas que deixei de conhecer e a ausência de artistas bem cools no meu ranking de mais ouvidos em 2024 para que eu pague de cult nas redes. Afinal, dezembro tá virando mais a época de saber o gosto musical dos seus amigos do que a época do Natal, tão forte que está esta tradição entre nós millenials.
Pelo menos esse ano minha lista de podcast estará em dia, porque – voltando ao tópico – eu engatei muito bem na rotina de exercícios físicos. Essa meta pelo menos estou cumprindo, com maestria até, já que, meu app de monitoramento de saúde me mostrou dados impressionantes de comparação da minha atividade física desse ano com a do ano anterior. Porque sim, um dos símbolos da minha meia-idade é que sou heavy user de smartwatch. Cheguei a me desesperar quando o meu parou de funcionar pouco antes da data prevista do nascimento do meu segundo filho e corri pra comprar um novo para ter monitorado tudo que rolaria comigo no parto em termos de batimentos cardíacos a gráfico de estresse, bem como a rotina de sono do puerpério. Tudo bem que nesse segundo quesito, o da rotina de sono, o relógio só me faz passar raiva mesmo, que todo dia ele diz que eu acordo muito à noite e preciso fazer um treinamento do sono pra dormir uma noite inteira com qualidade. E o danado me diz também que aparentemente meu comportamento do sono se assemelha ao de um pinguim – e agora toda vez que abro o app tá lá um pinguim meio desengonçado teoricamente representando ninguém mais ninguém menos que eu, com meu sono interrompido. Só que se tem uma coisa que o relógio não entende é que essa interrupção não é por vontade própria, e sim porque meu caçula, apesar de já dormir a noite toda praticamente, teima em vez ou outra acordar umas 2:30/ 3 da manhã pedindo BANANA – sim, ele come uma banana no meio da noite dele de sono e depois capota e volta a dormir imediatamente. A questão está aí: ele capota, mas eu tenho dificuldade de voltar a dormir depois que sou despertada – aí que entra o tal pinguim do sono quebrado – e muitas vezes fico ali no escuro, puta de estar acordada, sem poder fazer muita coisa a respeito e sabendo que além de tudo vou levar uma reprimenda do merdinha do meu relógio caga-regra que falha em entender que meu sono não é interrompido porque eu quero e sim porque teimam em me acordar. Taí, os pinguins também devem ter sido injustamente colocados como emblema do sono ruim, já que eles também cuidam bastante dos seus filhotes e só deixam que ele procure seu próprio alimento quando atinge o tamanho do pai. Pinguins também sofrem com filhotes acordando na madrugada e pedindo um plâncton, ou um camarão, ou sei lá. E sim, ser adulta na época da tecnologia tem me parecido ser mais angustiante do que nos anos dos gatões de meia-idade e das lobas, que fumavam impunemente para aplacar suas ansiedades e desconheciam tudo sobre os hábitos de sono dos animais – exceto quando por ventura esse tópico virava matéria do Globo Repórter sobre algum animal específico do cerrado, por exemplo.
Mas voltando às metas novamente. No fim, elas, que eram pra ser um incentivo, passam a ser uma bomba relógio a partir ali do meio do ano, ou mais precisamente do último terço do ano. Viram uma pressão enorme porque você se dá conta que não fez parte das coisas que colocou ali, que talvez não esteja nem meio caminho andado pra muitas e quiçá nem sequer saiba direito como tocar alguns dos planos. É quando se evidencia que nem tudo que se tem vontade de fazer é de fato fazível, em termos de: talvez demande um trabalho hercúleo para ser feito e você não esteja disposto a esse desgaste emocional que pode simplesmente não dar em nada. Que talvez, somente talvez, alguns planos não são mesmo feitos para saírem do papel -e pensando bem muitos nem deveriam ir parar no papel pra começo de conversa, que no minuto que um plano é concretizado em linhas escritas e alcança o status de “meta”, ele vira também uma cobrança em potencial.
Outro dia eu li a polêmica entrevista que saiu no The Times com aquela influencer norte-americana conhecida como Ballerina Farm. Ela é uma mulher loira, magra, linda e mórmom, casada com um cowboy meio marromeno, com quem tem 8 filhos and counting e faz comidas do zero (uma moda que merece um texto de devaneios só para ela), ganhando a vida com seus vídeos nas redes sociais. Nessa entrevista, a jornalista consegue extrair nas entrelinhas do encontro que, por trás daquela roupagem de família comercial de manteiga produzida desde a teta da vaca, existia uma mulher com sonhos frustrados, que poderia ter sido uma grande bailarina e abandonou tudo em prol de ser uma trad wife. A entrevista viralizou e, como tudo na terra de ninguém que são as redes sociais, polarizou opiniões. Pessoas de um lado dizendo para ela se livrar do marido e correr atrás dos seus sonhos, pessoas do outro dizendo que a jornalista impôs a leitura dela e que a tal bailarina mórmom é muito feliz com sua realidade. O argumento dessa segunda turma é que nem todos os planos se sustentam a longo prazo e muitos vão mudando ao longo da vida, deixam de fazer sentido ou são substituídos por outros que vão surgindo e tomam o primeiro plano.
Eu imediatamente concordei com o primeiro grupo que achou o marido um boy lixo que, com respaldo de algum fundamentalismo religioso, imputou na mulher uma obrigação de ser mãe de múltiplos filhos, tornando sua carreira inviável e fazendo com que ela vivesse o sonho dele ao invés do dela. Mas, como nem tudo é tão preto no branco como as redes sociais fazem parecer, eu também me peguei pensando muito sobre esse lance dos sonhos, que nem sempre são feitos para serem realizados. Eu mesma já tive muitos sonhos, muitos dos quais eu avancei no caminho de realizar e acabei deixando pra trás por diversas razões que generalizadamente poderiam ser concatenadas em “deixaram de fazer sentido”. Muita coisa que às vezes me pergunto como eu estaria se tivesse seguido por aqueles rumos. A vida é mesmo feita de caminhos que se fecham e outros que se abrem. Uma coletânea de “e se”s que podem levar à nostalgia, ao arrependimento, como também à felicidade, mesmo que uma felicidade com algum tom de nostalgia também, afinal, existe muito tom de cinza em tudo.
Foi com essa reflexão ainda fresca na minha mente que parei para rever minhas metas de 2024 e pensei quais daqueles micro-sonhos (digo micro porque as metas de ano novo não são necessariamente metas de uma vida inteira, a menos que você seja uma dessas pessoas que querem uma mudança bem radical de rumo) não foram ainda consolidados porque não são mesmo para ser. E de que servem as metas que não são realizadas, penso eu. Pois bem, talvez elas tenham sim um serviço bem útil até. Elas são um caminho, um caminho que você vai percorrer e vai mudar de rumo no meio. Mas esse pedaço percorrido vai virar parte de quem você é, afinal, o que é uma pessoa senão tudo que ela já viveu, suas memórias e suas experiências, que pautam as decisões que ela toma no presente? Talvez essas metas não realizadas sejam caminhos perdidos na sua vida, mas, como já diria Clarice, perder-se também é caminho.
Hahaha, amei!!